Fugindo das soluções fáceis, Surplus se contenta em mostrar um beco sem saída. Mas faz isso muito bem.
Longe de ser apenas uma crítica ao consumismo ou a sistemas políticos, Surplus, documentário sueco, dirigido pelo italiano Erik Gandini em 2003, é um olhar sobre o jeito de ser e de viver da humanidade. Largamente divulgado pela Internet, este trabalho coloca em discussão não apenas a vida em sociedade e a ordem estabelecida, como também a própria essência humana.
As necessidades dos homens, as maneiras de reagir a elas e as formas de controle social acabam por comprometer todo o ecossistema terrestre, sem exceção às relações humanas. Nenhuma discussão está mais na ordem do dia do que o equilíbrio socioambiental e ainda antes de Davis Guggenheim e seu Uma Verdade Inconveniente (2006), Gandini levava o tema às últimas conseqüências. Surplus mostra que tanto no capitalismo, como no socialismo, os homens tomam parte de sistemas cuja existência os antecede, mas que estabelecem modos de viver e de pensar, mantendo-os atados, como peças de um jogo maior, cuja função é a manutenção da ordem estatal.
Assim, saem de foco os sistemas político-econômicos em si. Os holofotes são direcionados para aquilo que os sustenta. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, Steve Ballmer e Bill Gates, executivos da Microsoft, aparecem defendendo a ideologia neoliberal, o capitalismo, o consumismo. Por outro lado, Gandini enfoca o modo de vida socialista, instalado em Cuba por Fidel Castro que surge defendendo sua ideologia não consumista. São dois sistemas opostos, porém ambos se utilizam dos meios de comunicação para divulgar mensagens que patronizam pensamentos, subjulgando corações e mentes, transformando indivíduos em parceiros que garantem a manutenção dos sistemas.
Fazendo analogia à influência da indústria cultural e à forma como é utilizada a linguagem midiática, Gandini adota o ritmo dos vídeo clips. Mescla cenas de palestras, discursos, entrevistas e reportagens jornalísticas em uma edição onde imagens se alternam em sintonia com a trilha sonora de sons eletrônicos. Imagem e ritmo se complementam em uma mistura que soa moderna e revela a intenção do diretor. Ele usa o próprio meio (áudio e vídeo) para chamar a atenção para o poder da mídia, disponível aos governos ou às corporações que ditam ideologias e comportamentos.
Por outro lado, se o discurso utilizado pelos capitalistas também sai da boca dos socialistas, tudo acaba no mesmo. E este “tudo” se refere à relação entre dominadores e dominados. A visão pessimista de Gandini se resume em: o homem é um ser de necessidades, na busca por satisfazê-las criou formas de organização social e, no interior delas, desenvolveu formas de dominação que mantém tudo e todos atrelados à ordem estabelecida, seja consciente ou inconscientemente. O sistema que exaure os recursos naturais, que beneficia os países desenvolvidos e cede aos países do terceiro mundo seus restos é criação dos homens e se mantém por cooperação deles. É um soco na boca do estômago de quem acha que não tem nada a ver com isso!
John Zerzan (o anarquista norte-americano que ganhou destaque a partir da década de 1980), e sua proposta fundamentada no retorno ao primitivismos caem no vazio diante da livre servidão humana a suas próprias necessidades. Gandini reafirma Freud que entende o homem como um ser “fadado à insatisfação”, pois está sempre buscando, sempre à procura sem nunca se complementar.
Ao retornar ao primitiviso o homem retomaria o anseio pelo desenvolvimento, e possivelmente, à sistemas de controle social, aos conflito de classes, ao consumo irracional de recursos naturais, à injustiça social, às relações entre dominadores e dominados. O que Gandini não oferece é a pista para uma saída segura. Assim, escapa à pretensão das soluções fáceis e coloca a solução do impasse sob a responsabilidade de cada um.